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Aborto legal: entenda o papel do médico nessa situação

Veja o quão importante é assegurar o aborto legal a crianças e adolescentes, devido aos riscos físicos e psicossociais que uma gravidez precoce acarreta.

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De acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve um estupro a cada nove minutos no país em 2021. Visto que o Ministério da Saúde estabelece que a adolescência é o período de 15 a 19 anos de idade, quase 61% destes estupros foram contra crianças. Em 2020, já haviam sido realizados por dia ao menos seis abortos em meninas de 10 a 14 anos no Brasil.

Estes dados são aterradores e mostram uma grande falha na garantia de segurança à infância. Vítimas de estupro têm direito ao aborto legal, pois entende-se que tal gestação resulta de uma violência, onde não houve consentimento. Além desses casos, quando a gravidez põe em risco a vida da pessoa ou quando o feto é anencéfalo também é garantido o direito à interrupção.

Para o artigo de hoje, buscamos informações que mostram o quão importante é assegurar o abortamento legal para crianças e adolescentes, devido às complicações físicas, sociais e psicológicas que uma gravidez precoce acarreta nestes períodos da vida. Boa leitura!

Riscos físicos

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cada 10 adolescentes grávidas ou com filhos, seis não trabalham e não estudam. Isso significa que a maioria dessas mães têm poucos recursos para manter uma alimentação saudável, essencial à prevenção de quadros de anemia, que se agravam durante a gestação devido à competição mãe-feto por nutrientes. Junto à falta de dinheiro, também é natural que adolescentes sejam mais imaturos, sendo maiores as chances de deficiência nutricional por descuido. 

Outros riscos comuns a todos, mas que acontecem com frequência inversamente proporcional à idade da gestante são relacionados à pressão arterial. A pré-eclâmpsia e a eclâmpsia, sendo a primeira uma piora de hipertensão preexistente, que é acompanhada de um excesso de proteína na urina durante a 20ª semana, e a segunda são as convulsões. 

Em casos mais graves, pode haver evolução destes problemas à síndrome de HELLP, que é definida pela presença de hemólise, elevação das enzimas hepáticas e plaquetopenia durante a gravidez. Na prática, todos estes riscos ficam maiores conforme o feto desenvolve-se dentro do útero.

Rupturas uterinas, com sequelas irreversíveis, e até morte também podem acontecer. Devido à tenra idade, crianças e adolescentes não têm capacidade de consentir com estas consequências. Além disso, 20% da mortalidade infantil no Brasil decorre do óbito de bebês nascidos de gestantes entre os 15 e 19 anos. E, muitos dos que nascem com vida, são fetos PIG, ou seja, prematuros. 

Riscos psicossociais

Em primeiro lugar, acontece a evasão escolar, sendo causa e consequência de dois outros problemas relacionados à gravidez. Um dos motivos que levam a gestante a abandonar os estudos é a falta de suporte financeiro e emocional da própria família, que julga suas atitudes em vez de acolhê-la. Há também a questão da discriminação, por parte dos colegas de classe e de seus respectivos pais, que a consideram uma “má influência”.

Assim, além de afastá-la da escola, o preconceito também a isola na sociedade, visto que seus vínculos são cortados. Sozinha e em situação de vulnerabilidade social, a gestante adolescente pode desenvolver vários distúrbios mentais, como ansiedade e depressão. 

Com os estudos incompletos, as oportunidades profissionais tornam-se muito mais limitadas, reduzindo suas chances de crescimento financeiro ou de alcançar estabilidade. Isso sem falar que, mesmo após o nascimento do filho, a pessoa continua enfrentando barreiras para conseguir um emprego remunerado exatamente por ter um dependente.

Mesmo que todas as situações expostas já sejam difíceis o suficiente, ainda há cenários mais complexos. Em casos de gravidezes muito precoces, como às que acontecem entre os 10 a 14 anos, a incapacidade cognitiva de lidar com a responsabilidade de um filho e com suas frustrações pessoais pesa sobre os ombros da pré-adolescente que, na prática, também é apenas uma criança.  

Por fim, há ainda a situação daquelas que engravidam de forma violenta, ou seja, que são vítimas de estupro. Além de precisar sobreviver aos problemas que mencionamos anteriormente, as adolescentes na maior parte das vezes não têm recursos e/ou uma rede de apoio com a qual trabalhar o trauma sofrido. Tudo isso pode acarretar mais dor e sofrimento também a partir do nascimento e nos anos futuros, se mãe e filho forem incapazes de se conectarem afetivamente

Como o aborto é realizado pelo SUS

Segundo a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, criada pelo Ministério da Saúde, a gestante deve receber orientação e livre espaço para escolher qual técnica será empregada para realização do aborto.  Entre as três disponíveis pelo Sistema Único de Saúde (SUS), estão:

  • Abortamento farmacológico, ou seja, induzido por medicamentos;
  • Procedimentos aspirativos, como a aspiração manual intrauterina (AMIU);
  • Dilatação seguida de curetagem.

No Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), existem 89 locais que oferecem o serviço de aborto legal no Brasil. Porém, segundo o Mapa Aborto Legal, apenas 42 realmente realizam o procedimento. Infelizmente, em algumas unidades são feitas exigências descabidas, como Boletim de Ocorrência em caso de estupro e  decisão judicial autorizando o procedimento. 

Bioética em casos de aborto

De acordo com o Código Penal, não há um período gestacional limite para que o aborto legal seja feito. O que existe é uma norma técnica do Ministério da Saúde, com regulamentação da prática até a 22ª semana. Porém, tal protocolo tem caráter de recomendação e não deve se sobrepor à Lei de interrupção. Nesse sentido, segundo a legislação vigente, um médico não pode se recusar a fazer um abortamento baseando-se na formação do feto.

Em contrapartida, o Conselho Federal de Medicina (CFM) também assegura aos profissionais da área o chamado "Direito à Objeção de Consciência". Mas o que é isso? Bom, em linhas gerais, é o direito de se recusar a realizar um procedimento que seja incompatível a seus princípios religiosos, morais ou éticos, como é o caso do aborto para muitas pessoas.  

No entanto, o médico não pode reclamar objeção de consciência nas seguintes condições: “[...] salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente”. Outro trecho ainda enfatiza que é vedado “descumprir legislação específica nos casos de transplante de órgãos ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento”.

Medicina e aborto seguro

Como pudemos ver, o abortamento legal existe em prol da preservação da vida da pessoa, tanto no caso de uma gravidez que foi fruto de uma relação sexual consentida, mas que traz risco de morte à gestante, quanto nas situações de estupro. E quando falamos de crianças e adolescentes grávidas, a necessidade de tal procedimento torna-se ainda maior.

O Juramento de Hipócrates, feito pelos estudantes de Medicina no ato da formatura, menciona o não oferecimento de substâncias abortivas. Porém, desde 1940, a legislação moderna se sobrepõe à filosofia grega na garantia de direitos básicos à população brasileira, que sofre com tamanhos índices de violência sexual.

Na prática, além de respeitar a escolha da gestante, cumprindo o seu dever, o papel do médico nessas situações também é o de acolhê-la sem julgamentos ou quaisquer comportamentos discriminatórios. Somente assim, este momento que já não é fácil para nenhum dos envolvidos pode acontecer de forma humanizada.  

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