Orgulho: 9 atitudes que médicos devem ter para atender pessoas LGBTQIAP+
A falta de um atendimento inclusivo dificulta o acesso de pessoas LGBTQIA+ à Saúde. Saiba como ser um médico acolhedor desde a faculdade com este artigo.
No Mês do Orgulho LGBTQIAP+, como forma de apoio a todos os estudantes que pertencem à comunidade, nós escrevemos este artigo bastante esclarecedor. Afinal, por mais que muitos espaços já tenham sido conquistados, condutas discriminatórias ainda são um dos principais motivos de pessoas fora do padrão heterocisnormativo não terem acesso à Saúde de forma plena.
A boa notícia é que, às vezes, a ausência de um atendimento inclusivo não se dá por maldade, mas por falta de conhecimento. Então, se você quer aprender a ser um médico acolhedor desde a faculdade, aqui está a sua chance. Abaixo estão listadas nove atitudes para que a Medicina seja enfim para todes. Confira!
1) Rejeitar a heterocisnormatividade
Esta é a atitude que dará suporte a todas as outras que lhe serão apresentadas adiante, portanto, nada mais sensato do que abordá-la com prioridade. E é claro que para isso nós primeiro explicaremos o que é heterocisnormatividade.
Bom, de acordo com o dicionário Michaelis, a palavra ‘normativo’ significa “Que serve de norma ao se estabelecer um padrão a ser seguido”. Ao colocar os pré-fixos ‘hétero’ e ‘cis’, entende-se que o termo refere-se à ideia de que: sentir atração afetiva e/ou sexual apenas pelo sexo oposto e identificar-se com o gênero que foi lhe designado ao nascimento é a forma correta de se comportar e existir.
Já deu para entender o quão excludente e preconceituosa essa visão de mundo é, certo? Pois bem! De modo geral, a população brasileira, como boa parte das sociedades Ocidentais, foi construída de acordo com valores heterocisnormativos, o que acarretou uma série de disparidades em Saúde às pessoas LGBTQIAP+.
Para deixar bem transparente a magnitude deste problema, vamos a alguns exemplos. A partir da heterocisnormatividade, considera-se correto que um bebê nascido intersexo, ou seja, com pênis e vulva, precisa passar por um procedimento cirúrgico autorizado pelos pais para remoção de um dos dois órgãos genitais. Em contrapartida, rejeitar esta ideia permite que ele se desenvolva e decida por si mesmo quando atingir idade de consentimento.
Por que isso importa? Porque não existem apenas pessoas cisgêneros no mundo. Logo, não significa que uma criança intersexo, que foi designada menina após a remoção do pênis ao nascimento, se identificará com este gênero quando crescer. Porém, só é possível conceber esta possibilidade quando acolhemos a ideia de que a transexualidade e a não-binariedade, entre outras identidades de gênero, são válidas e tão normais quanto a cisgeneridade.
Outro exemplo de percepção guiada pela heterocisnormatividade é assumir que uma paciente gestante necessariamente possui um parceiro homem. Apenas com a rejeição desta ideia há abertura para se compreender que ela pode ser uma mulher lésbica e que o casal engravidou por meio de uma fertilização in vitro.
A sensibilidade de saber que tal possibilidade é tão natural quanto qualquer outra garantirá que uma pergunta sobre orientação sexual seja feita com respeito, garantindo assim que as indicações médicas serão compatíveis à realidade da paciente. A transmissão do HPV, por exemplo, também acontece a partir do sexo vulva-vulva. Então, perguntar sobre práticas sexuais sem preconceito é fundamental para prestar o devido atendimento.
Por fim, assumir quais são as preferências sexuais da pessoa a partir da sua orientação sexual; qual é o órgão genital de uma pessoa a partir de seu sexo fenotípico; e que a identidade de gênero determina quais parceiros a pessoa terá também são percepções nocivas que existem devido à heterocisnormatividade. E é preciso romper com este padrão para cuidar da Saúde de quem pertence à comunidade LGBTQIAP+.
Na prática, você com certeza desenvolverá mais rápido tanto esta atitude como as outras que explicaremos adiante se dedicar parte do seu tempo a conhecer a história do movimento, seus desafios e suas conquistas. Afinal, não dá para colocar-se no lugar do outro quando não se sabe que lugar é esse.
Segundo uma pesquisa realizada em 2021, pessoas trans, travestis e não-bináries representam 1,9% da população brasileira. Portanto, pode ser que você não conheça alguém não-conforme de gênero pessoalmente. Mas isso também não é um problema. Na era digital e com o crescimento da boa representatividade na mídia, você pode recorrer a livros, filmes, séries, documentários e reality shows para aprender.
Inclusive, aqui estão algumas sugestões:
- Viagem Solitária, de João Nery (2011) e Boy Erased, de Garrard Conley (2016);
- Handsome Devil (2016) e A Festa de Formatura (2020);
- Revelação (2020), Transhood (2020), Transversais (2022) e Changing the Game (2021);
- Heartstopper (2022), Pose (2018) e Crônicas de São Francisco (2019);
- Queer Eye (2018).
2) Perguntar as preferências de tratamento dos pacientes
Um dos argumentos mais frequentes de quem não concorda com a prestação de atendimento diferenciado baseados em identidade de gênero e orientação sexual é o de que isso contradiz a ideia de que todas as pessoas são iguais. Porém, cuidado afirmativo com a individualização do tratamento não está mesmo relacionada à igualdade, mas à equidade.
Estudos nacionais e internacionais já comprovaram que há níveis mais altos de depressão e ansiedade, assim como um risco maior de se cometer suicídio entre pessoas LGBTQIAP+. Historicamente, indivíduos pertencentes à comunidade têm mais dificuldade de inserir-se no mercado de trabalho, muitas vezes por serem expulsos de casa antes de concluírem os estudos e/ou por sofrerem preconceito em processos seletivos. Durante a pandemia, 6 em cada 10 tiveram diminuição ou ficaram sem renda.
Se considerarmos tais números, percebemos que essas pessoas precisam de mais atenção, como qualquer outro grupo em situação de vulnerabilidade social. Além disso, como citamos no item anterior, existem particularidades clínicas às diferentes orientações sexuais e identidades de gênero, como também existem para idosos e para crianças, apesar de todos pertencerem à espécie humana.
Também é comum ouvir que “utilizar pronomes neutros é muito difícil”. Bom, nós temos certeza de que àqueles que foram capazes de passar em provas de Histologia e de memorizar a funcionalidade de vários órgãos do corpo humano, aprender a falar “elu/delu” ou “ile/dile” não será nenhum grande desafio. Basta querer.
Mais uma vez, para saber as preferências de tratamento e não sair assumindo nada ao leu, um bom médico deve tomar a atitude de perguntar quais são os pronomes a partir dos quais o paciente prefere ser tratado. Formulários de cadastro em clínicas e hospitais também precisam ser adaptados nesse sentido, sempre oferecendo opções neutras e espaço para inserção de nome social, pois muitas pessoas trans e não-bináries não conseguem arcar com os custos da retificação de seus documentos oficiais.
3) Aprender palavras de uso comum à comunidade
Além de conhecer cada orientação sexual e identidade gênero e suas respectivas carências em Saúde, existem acessórios e práticas comuns entre pessoas LGBTQIAP+ que também precisam estar no radar de todo médico. Como você verá em nosso Glossário, as recomendações médicas podem ser importantes para manutenção do bem-estar do paciente.
4 e 5) Oferecer um ambiente acolhedor e apresentar-se como aliado
Existe uma forte cultura de justificar os altos índices de ISTs e distúrbios mentais, como ansiedade e depressão, culpabilizando as pessoas LGBTQIAP+ por não procurarem os serviços de saúde regularmente. No entanto, o motivo por trás dessa “evitação” na maior parte dos casos é o medo de sofrer discriminação.
Logo, principalmente no atendimento a adolescentes e jovens adultos, a ambiência pode fazer total diferença para que o paciente sinta-se seguro em falar sobre suas práticas sexuais e disforias com o corpo. E isso não requer muito. Um simples cartaz sobre saúde LGBTQIAP+ pregado na parede do consultório já vai dizer o suficiente para muitas pessoas.
Outra opção é bordar a bandeira do movimento ou uma frase de apoio em uma região visível do seu jaleco. Na prática, essas pessoas não têm mais questões de Saúde por pertencerem à comunidade LGBTQIAP+, mas sim por serem quem são em uma sociedade heterocisnormativa.
6) Abandonar expressões preconceituosas
Esta é uma atitude essencial para sua evolução pessoal também, mas o exercício da Medicina exige por premissa a não-violência. Por esse motivo, falaremos sobre algumas expressões, palavras e comportamentos que devem ser eliminados da sua vida.
- Homossexualismo: o sufixo “-ismo” designa “intoxicação” pelo agente, cuja palavra complementa, e só existe porque até 1990 a Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda classificava orientações homoafetivas como doença. A palavra correta é: Homossexualidade, com o sufixo que expressa “estado”.
- Opção sexual: por quem uma pessoa sente atração e/ou afeto não é uma questão de escolha. O termo correto é: Orientação Sexual.
- Mudança de sexo: pessoas transexuais passam por procedimentos cirúrgicos que as ajudam a afirmar o gênero com que se identificam e aos quais sempre pertenceram, mas não eram livres para expressar. O termo correto é: Redesignação Sexual.
- Procedimento estético: cirurgias de afirmação de gênero não são estéticas, apesar de serem eletivas, pois a disforia causa dor e sofrimento à pessoa não-conforme.
- Hermafrodita: este termo caiu em desuso devido à estigmatização social, sendo substituído por Intersexo.
- Ideologia de gênero: rótulo utilizado para invisibilizar e politizar conhecimentos sociológicos, antropológicos, biológicos, psicológicos e científicos sobre a população LGBTQIAP+.
Há outras várias falas que devem ser evitadas, mas aqui nós nos limitaremos às mais comuns. Por exemplo, “Mutilação”, quando referir-se à remoção de útero e ovários de homens trans. Bem como, dizer que a pessoa “nem parece que nasceu menino/menina”, pois elas nunca foram assim, apesar de terem sido designadas.
Em suma, também existem certas convenções que devem ser respeitadas. Um exemplo clássico de grosseira é perguntar o nome morto de uma pessoa trans. Pelo médico ocupar uma posição de autoridade, talvez ela responda à pergunta mesmo sem querer, o que pode causar constrangimento e remorso, além de reavivar memórias negativas. Jamais permita que a sua curiosidade se sobreponha à empatia.
7) Tomar posição contra a LGBTfobia
Abandonar, mas sem esquecê-las. Pois assim você ainda poderá defender pessoas LGBTQIAP+ em hospitais, clínicas e ambulatórios, como em qualquer outro lugar, e corrigir seus colegas de trabalho quando perceber o uso de expressões discriminatórias.
Já imaginou o que um paciente sente ao ser discriminado por um médico em uma situação de vulnerabilidade? As consequências da violência moral são inúmeras e o ideal seria voltar no tempo para impedir que acontecesse.
Mas você ainda pode fazer a diferença na vida daquele paciente ao defendê-lo no mesmo momento, demonstrando que sua existência é válida. Assim, ele saberá que não está sozinho e que o médico em questão não representa toda a categoria de profissionais.
8) Trabalhar dentro dos limites da sua especialidade
Não cabe a um médico analisar o comportamento de um paciente que conheceu há cinco minutos, principalmente quando esta não é a sua especialidade. Além de sentir-se julgado, o fato de o comentário vir de um profissional da Saúde pode gerar muitas autocríticas danosas. Para desenvolver esta habilidade, é preciso ser humilde para assumir que não conhece a realidade e os desafios de quem está do outro lado da mesa do ambulatório.
Diante de uma declaração difícil, quando sentir que o paciente não está bem ou que precisa de ajuda, pergunte se ele faz algum acompanhamento psicológico ou psiquiátrico para lidar com as pressões sociais e familiares heterocisnormativas. E, em caso negativo, procure ajudar com alguma indicação.
9) Reportar casos de LGBTfobia aos superiores
Caso precise, você terá o respaldo do Código de Ética Médica, cujo artigo 23 proíbe todo médico de “tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto". As denúncias podem ser feitas por qualquer pessoa, profissional ou não da área, nos Conselhos Regionais de Medicina.
Além disso, vale lembrar que a LGBTfobia é crime, inafiançável e imprescritível, desde 2019, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). A punição para quem descriminar pessoas pertencentes à comunidade por sua orientação sexual e/ou sua identidade de gênero é de um a três anos de prisão.
Por uma Medicina inclusiva e acolhedora
Desde 2011, o Ministério da Saúde determina diretrizes e objetivos por meio da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Mas a mudança só acontecerá quando a maioria dos médicos tomar para si a responsabilidade de desenvolver as atitudes necessárias para atender estes grupos sociais.
Abordar questões de gênero e de sexualidade para além do sentido reprodutivo é promover a inclusão. Negligenciar os cuidados específicos dos quais quem vive à margem da heterocisnormatividade precisa é seguir o caminho contrário, criando uma barreira no acesso á Saúde; constrangendo e, muito provavelmente, errando diagnósticos.
Por uma Medicina acolhedora, aprenda a ser um porto seguro para os seus futuros pacientes desde hoje. Estude no maior ecossistema de educação médica e healthtechs do Brasil. Baixe aqui o nosso Manual do Plano de Carreira para futuros médicos.