Especialidades

Folie à deux: o que é e como ocorrem as dissonâncias cognitivas coletivas?

Machado de Assis estava certo em sua obra “O Alienista”: a “loucura” é, sim, contagiosa. Descubra tudo sobre como isso é possível a partir da folie à deux!

5
minutos de leitura

O que você sabe sobre Folie à deux? Nada? Já ouviu falar alguma vez, mas não se lembra? Aqui está a sua chance de aprender sobre este fenômeno de uma vez por todas.

Imagine-se caminhando por uma rua movimentada. Ao cruzar a faixa de pedestre, distraído, você “tromba” com uma pessoa em estado de confusão mental. Breves pedidos de desculpas são pronunciados com pressa e ambos seguem seus caminhos, cada um para o seu lado.

De repente, seu pensamento sobre a lista de supermercado a fazer é substituído por uma paranoia que você não sabe de onde vem e nem exatamente sobre o que é, mas que, de certo modo, lhe é atraente. Por mais ilógica que seja, ela oferece uma justificativa que satisfaz o seu ego.  

Na sua mente, desenrola-se uma cena inaceitável: um grupo específico de pessoas invade a sua casa e rouba a sua comida. A partir daí, seu dever não é mais escrever sua lista e comprar tudo de novo. Seu dever é lutar contra essas pessoas na vida real.

Tudo bem, tudo bem. Vamos parar este exercício criativo. Afinal, não é bem assim que delírios coletivos iniciam-se, como uma doença que pode ser transmitida por contato.

Mas, nosso célebre autor brasileiro Machado de Assis estava certo em sua obra “O Alienista”: a “loucura” é, sim, contagiosa. Descubra tudo sobre como isso é possível nas próximas linhas.

O que é Folie à deux?

Folie à deux, na tradução literal para o português, significa “loucura a dois” e, ao ler a definição científica, você verá que faz bastante sentido o emprego da expressão. Clinicamente, folie à deux é considerada uma síndrome rara, onde há o compartilhamento de sintomas psicóticos entre duas ou mais pessoas.

Alguns destes sintomas são: catatonia, abulia, alucinação e alteração do processo de pensamento. Tudo isso é um sinal de que nossa cognição, isto é, nossa capacidade de perceber o entorno, adquirir conhecimento e discernir, está sofrendo.

Para compreendermos as dissonâncias cognitivas coletivas, vamos nos ater a esse último sintoma. O pensamento desorganizado pode ser um reflexo da mente buscando alternativas, mesmo que ilógicas, para cessar o desconforto que a dissociação cognitiva gera em nós.

A princípio, a dissonância cognitiva deveria ser uma coisa boa, pois serve para mudarmos nossas crenças e atitudes ao sermos apresentados à novas informações ou fatos verídicos que a contradizem. No entanto, raramente é isso que acontece.

Em geral, quando contrariadas, as pessoas procuram se defender a todo custo para não admitir que estão erradas. Tal necessidade de se defender na presença do desconforto da dissonância cognitiva leva à soluções danosas a curto e longo prazos.

Uma delas é a negação das informações ou fatos recebidos, por mais que já tenham sido comprovados, por meio da difamação das fontes emissoras. Outra é a justificação do comportamento ou do pensamento equivocado com mentiras e preconceitos.

Já deu para perceber aonde isso chega quando unido ao efeito da folie à deux, certo? Então, vejamos como isso acontece na prática, com alguns exemplos.

Saiba mais: O que é psicofobia e como combatê-la

Possíveis causas da síndrome

A causa da folie à deux está diretamente relacionada às condições psíquicas do “contagiado”. Por exemplo, quem tem uma estrutura egóica inconsistente tende a se espelhar no outro para construir sua própria personalidade.

Ou seja, quando a pessoa não tem princípios ou não quer conscientemente descobrir-se, há uma grande possibilidade de que ela busque sua autoimagem em alguém que admire. Se a pessoa estiver em estado de delírio, com sintomas psicóticos, essa “loucura” será transmitida.

Não significa, porém, que toda dissonância cognitiva coletiva acontece por intermédio de líderes esquizofrênicos. As buscas para que suas justificativas ilógicas sejam endossadas por muitas pessoas é, por vezes, um ato planejado com o cérebro em pleno funcionamento, como no caso da psicopatia.

Assim, um comportamento errado pode permanecer inalterado pelo fato de que recebeu apoio público. Faz sentido?

A falta de uma personalidade própria também pode ser resultado da baixa autoestima, que gera um medo de desagradar. Neste caso, a pessoa pode embarcar em um comportamento de massa somente para se sentir validada e/ou protegida.

Outros tipos de “loucura compartilhada” são:

  • Folie imposée ou “loucura imposta”: acontece quando uma pessoa dominante desenvolve uma crença ilusória durante um episódio psicótico e, depois, tenta impô-la em outras;
  • Folie simultanée ou “loucura simultânea”: acontece quando duas pessoas em delírio sofrem psicoses independentes, mas cuja troca influencia o conteúdo uma da outra, tornando-as semelhantes ou até iguais;
  • Folie communiquée ou “loucura comunicada”: acontece quando uma pessoa saudável resiste, mas acaba envolvendo-se no quadro psicótico, que persiste mesmo após a sua separação do indivíduo causador;
  • Folie induite ou “loucura induzida”: acontece quando um paciente psicótico grave adiciona delírios a um paciente suscetível à psicose.

Leia também: Entenda como é a especialização em Psiquiatria

Diagnóstico e tratamento

A origem da dissonância cognitiva, ou seja, a dificuldade de assumir um erro e de mudar suas crenças, ressurge como um desafio à saúde. Para que a síndrome de folie à deux seja diagnosticada e tratada, o paciente precisa reconhecer que seus pensamentos estão dissociados da realidade.

Nesse sentido, quem convive com a pessoa em estado de confusão mental pode auxiliar na identificação do problema ao detectar certos sinais. São alguns sintomas: o delírio persecutório, religioso ou grandioso; a querelância; a hipocondria; a compulsão; e a obsessão; dentre outros. 

A partir daí, o encaminhamento deve ser feito a um psiquiatra. Este é o profissional qualificado para determinar se a pessoa está com alteração de pensamento ou não, e se é ela o paciente primário ou secundário do quadro de psicose compartilhada.

Segundo Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP, casos de folie à deux têm cura, com o afastamento da pessoa “contagiada” do indivíduo causador do delírio que, caso seja diagnosticado com esquizofrenia, receberá tratamento medicamentoso.

Gostou deste conteúdo sobre a mente humana? Então, entenda melhor a diferença entre a atuação de psicólogos e psiquiatras no cuidado à saúde psíquica!