Carreira e Mercado

Qual é o papel do médico na luta contra epidemia de opioides?

Mergulhe nos dados revelados pela investigação que derrubou a Purdue Pharma – empresa por trás da epidemia de opioides nos EUA.

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Uma epidemia de opioides não acontece do dia para a noite, e não pode jamais ser considerada como um acidente. Hoje, vamos apresentar a você um resumo da série baseada em fatos reais, intitulada Império da Dor, que estreou na Netflix em 2023, chocando milhares de espectadores mundo afora.

Então, você dará o veredito. Afinal, o que está por trás dessa crise sanitária?

Uma investigadora da Procuradoria Geral dos Estados Unidos descobre que um remédio está sendo receitado em doses excessivas. O medicamento em questão pertence à Purdue Pharma: uma empresa que, à época da morte de seu fundador, possuía um único remédio lucrativo: o MS Cotin.

Pesquisas de mercado, porém, mostraram que as pessoas associavam a base do MS Cotin, a morfina, com coisas negativas, como a morte. Já a oxicodona – 2x mais potente – era uma página em branco para transformar no que quisessem. A partir disso, Richard Sackler convence os outros herdeiros a lançarem o OxyContin.

Nenhum teste com ratos resultou em óbito, embora os animais tenham apresentados sintomas de abstinência. Então, houve sinal verde para os testes em seres humanos.

Na primeira fase, metade não sentiu o efeito durar por 12 horas, como deveria. Em outro ensaio, um terço dos pacientes com câncer desistiu, alegando ser ineficaz.

Mas, novamente, ninguém morreu e muitos participantes afirmaram ter sentido “suficiente alívio da dor”. Assim, a família Sackler já podia solicitar sua aprovação na FDA, a Anvisa dos Estados Unidos, para um remédio seguro e eficaz.

A liberação, contudo, só veio após várias reprovações. Quem bateu o martelo? O médico Curtis Wright que, um ano depois, saiu da FDA e foi trabalhar onde? Na Purdue.

São tantas red flags que é até difícil contar. Todavia, uma coisa é certa: não há somente um culpado nessa história.

A seguir, você vai mergulhar fundo nos dados revelados pela investigação que derrubou a Purdue Pharma nos Estados Unidos. Você também aprenderá valiosas lições sobre como exercer a Medicina com ética.

Como se deu a epidemia de opioides nos Estados Unidos

Lembra-se de quando os noticiários anunciavam a próxima “onda de Covid” durante a pandemia? Bom, a atual epidemia de opioides nos Estados Unidos se deu de forma similar, sendo a primeira onda deflagrada pelo fácil acesso ao OxyContin da Purdue Pharma.

Em poucos meses, estava instaurado o caos. Quando o governo estadunidense decidiu intervir, a comercialização do remédio foi interrompida e os médicos pararam de receitá-lo. Ou seja, milhões de pessoas viciadas, de repente, não conseguiam mais adquirir o medicamento.

Assim, surgiu a segunda onda da epidemia de opioides, agora, por meio do mercado ilegal. Para suprir a dependência pelo OxyContin, a população passou usar heroína, cujo potencial de destruição é extremamente elevado.

Talvez seja difícil para você imaginar algo pior do que a heroína, mas existe, e por mais estranho que pareça, trata-se de uma droga lícita. Seu nome é fentanil – um analgésico 100x mais forte do que a morfina.

No Brasil, somente hospitais têm autorização para administrá-lo internamente. O fentanil foi o opiáceo da terceira onda.

Atualmente, fala-se sobre uma possível quarta onda que será à base de remédios análogos ao fentanil ainda mais perigosos. Alguns incluem, inclusive, substâncias de uso veterinário para anestesiar elefantes – um animal com 75x o peso de um ser humano em média.

O “Império da Dor” em números

A partir de 1999, o número de mortes causadas pelo consumo de opioides quadruplicou nos Estados Unidos. Segundo o Instituto Nacional de Abuso de Drogas, estima-se que mais de 130 pessoas morrem por dia devido à overdose de medicamentos opiáceos nos EUA.

Mas, nem todos concordam com o uso deste termo, pois muitos pacientes foram a óbito seguindo exatamente o que lhes foi receitado pelos seus médicos. Entre 2006 e 2014, mais de 100 bilhões de doses de oxicodona e hidrocodona foram distribuídas pelo país.

Em 2023, o número de mortes num geral foi de 300 pessoas por dia, incluindo drogas lícitas e ilícitas. A porcentagem? O Centro de Controle de Doenças (CDC) estima que 68% foram causadas pelo uso de fentanil.

Tudo isso gerou uma crise sanitária, que chegou a custar 80 bilhões de dólares aos cofres do governo estadunidense por ano. A título de curiosidade, após declarar falência, a Purdue Pharma fechou um acordo com a condição de não receber novas ações pelos seus atos.

O valor pago por eles? 6 bilhões de dólares.

Cenário do fentanil e outros opiáceos no Brasil  

Em fevereiro de 2023, a Polícia Federal brasileira apreendeu lotes irregulares de fentanil nos estados de São Paulo e do Espírito Santo.  Meses depois, duas novas apreensões aconteceram no Amazonas.

Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) já haviam se manifestado, denunciando o aumento dos pedidos por opioides sintéticos dentro e fora das farmácias brasileiras. Entre 2009 e 2015, as vendas de opiáceos cresceram 465% no país – o que não inclui o período da pandemia.

Por aqui, porém, o problema é outro. Estima-se que até 3% da população já tenha usado opiáceos sem prescrição. Esta automedicação poderia causar uma epidemia de opioides caso a Anvisa não proibisse a publicidade de remédios controlados para o público geral, como acontece nos Estados Unidos.

Segundo a Agência, houve também um aumento de 105% na venda de tramadol de 2013 a 2022. Neste mesmo período, a morfina também foi mais comercializada, crescendo 46,4%, enquanto as vendas de fentanil caíram 54,8%.

Medicina e responsabilidade social  

Dentre todos os personagens da série, um marcará profundamente todo estudante de Medicina. Embora a série seja baseada em fatos reais, o médico Gregory Fitzgibbon, interpretado pelo ator John Ales, é fictício, sendo a personificação dos vários profissionais que se opuseram ao OxyContin.  

Estudioso, ele avalia friamente a bula dos medicamentos que prescreve aos seus pacientes, o que faz parte do seu trabalho com responsabilidade social. É por isso que ele consegue rebater todos os argumentos da representante de vendas da Purdue Pharma que um dia aprece em seu consultório.

Basta observar os resultados da mistura entre Medicina e comércio para saber que o ideal é sempre desconfiar. Isso não significa descartar qualquer novo medicamento introduzido no mercado.

Mas é fundamental ler os estudos que o precederam antes de qualquer prescrição. Assim, é possível descobrir o potencial viciante de um remédio antes que a dependência destrua a vida de alguém.

Entre 8% e 12% das pessoas com dor crônica tornam-se dependentes. Além disso, não existem evidências que sustentem o uso de opioides em pacientes não oncológicos, visto que a morfina é mais barata e flexível.

Outro critério que deve ser avaliado durante a anamnese é o histórico de depressão, ansiedade, dor crônica e vício na família do paciente. Pessoas com essas questões são mais suscetíveis ao abuso de substâncias e o custo-benefício de qualquer tratamento padrão deve ser levado em conta.

Adriane Fugh-Berman: a médica líder no combate à epidemia de opioides

Muitos dos dados que apresentamos acima foram fornecidos por ela. Adriane Fugh-Berman dirige o programa PharmedOut da Universidade de Georgetown, cujo objetivo é identificar práticas corruptas de marketing realizadas pela indústria farmacêutica.

Vale a pena pesquisar um pouco mais sobre essa professora que está na linha de frente da luta contra a epidemia de opioides nos Estados Unidos. Abaixo, trouxemos a lista que ela escreveu com o “passo a passo para uma catástrofe” camuflada como “cura para a dor”.

Começa assim:

  1. Exagerar os riscos de analgésicos não opioides;
  1. Descrever opioides como um tratamento excelente;
  1. Omitir e mentir sobre o risco de dependência;
  1. Reafirmar para os médicos que o monitoramento evitará problemas;
  1. Convencer os médicos a continuarem prescrevendo mesmo quando a droga não é eficaz;
  1. Encorajar seu uso a longo prazo;
  1. Dar outro nome à dependência;
  1. Eximir-se de qualquer responsabilidade.

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