Como a educação sexual para crianças e jovens contribui com a Medicina
Até hoje, falar sobre educação sexual para crianças e jovens é um tabu no Brasil. Neste artigo, revelamos a importância desta disciplina sob a ótica médica.
De acordo com o dicionário, o termo “tabu” pode ser compreendido como proibição imposta por costume social ou como medida protetora. Até hoje, falar sobre educação sexual para crianças e adolescentes encontra encaixe perfeito na primeira parte desta descrição, mas definitivamente passa bem longe da segunda. Em vez de protegê-los contra possíveis abusos, gravidez precoce e doenças sexualmente transmissíveis, evitar falar sobre sexo os coloca em situação de vulnerabilidade por pelo menos dois motivos.
Primeiramente, porque conhecimento é poder e, como você verá adiante, este é responsável por orientar boas decisões quando se trata de saúde. Em segundo lugar, porque reprimir é uma forma de humilhar, o que, de acordo com a PhD Brené Brown, faz com que criemos mecanismos de defesa para não expor quem realmente somos e, no fim das contas, todo esse medo leva a mais desinformação.
Em julho de 2022, o DataFolha divulgou que 73% da população brasileira concorda que discussões sobre educação sexual devem estar nos currículos escolares. Depois de ler este artigo até o fim, você não apenas se juntará a eles, como também entenderá como esta disciplina contribui com a Medicina.
Previne contra abusos e gravidez precoce
Nós decidimos começar já com dois problemas graves de saúde e segurança pública, que em muitos casos têm vinculação direta, mas não necessariamente. Então, vamos por partes. Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve um estupro a cada nove minutos no país em 2021, sendo quase 61% contra crianças. E, no ano anterior, já haviam sido realizados por dia ao menos seis abortos em meninas de 10 a 14 anos.
Estes dados mostram que há uma grande quantidade de gravidezes precoces no Brasil, decorrentes de abusos sexuais. Ou seja, além do trauma causado pela violência em si, crianças e adolescentes ainda podem sofrer todos os riscos físicos e psicossociais de continuar com a gestação, caso não consigam acesso ao abortamento legal. Recentemente, vimos nos noticiários que a negativa a este direito acontece com frequência em nosso país.
Na prática, a educação sexual contribui com a prevenção de abusos, pois ensina sobre integridade corporal, sentimentos, diferenças entre toques agradáveis/bem-vindos e toques invasivos/desconfortáveis, entre outras questões. Existem, inclusive, cartilhas com orientações sobre quais são os assuntos pertinentes e quais são as melhores abordagens para cada faixa etária, desde a primeira infância.
Mas será que lugar de aprender sobre educação sexual é na escola? De acordo com um levantamento da Unicef, estima-se que nove em cada dez casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são cometidos por um conhecido da vítima, sendo muitos deles da própria família. Nesse sentido, embora o papel dos pais seja imprescindível à proteção dos filhos, esperar que todas as orientações necessárias venham de casa é ser negligente com boa parte da população.
Também existem casos de gravidezes precoces em que não há abuso e, nestes casos, a importância da educação sexual dá-se de outro modo. Estudos já comprovaram que as lições focadas em abstinência não têm sido bem-sucedidas em seu objetivo de incentivar que os jovens posterguem o início de suas vidas sexuais.
Ao contrário do que muitas pessoas imaginam, o propósito da educação sexual não é incentivar a prática do sexo, mas sim orientar quanto às formas de praticá-lo com segurança. Durante as aulas, os adolescentes aprendem sobre controle de natalidade, métodos contraceptivos, características de relacionamentos saudáveis, doenças sexualmente transmissíveis, pensamento crítico e amor próprio.
Só no Brasil, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 13 milhões de adolescentes tenham engravidado nas últimas duas décadas, sofrendo com todos os danos consequentes. Não à toa, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) se manifestou sobre o posicionamento de uma porta-voz do Governo em relação às propostas de prevenção à gravidez precoce. O comunicado dizia:
A abstinência somente é saudável se for uma escolha genuína do adolescente e não uma imposição ou a única opção oferecida. É fundamental garantir espaço para a autonomia. Qualquer programa com o objetivo de reduzir a prevalência de gravidez precoce deve promover o acesso à orientação adequada.
Previne contra o HIV e outras ISTs
Antes de deixarmos o assunto da abstinência para trás, há ainda outro fator relevante sobre isso: muitos jovens não veem incompatibilidade entre fazer sexo oral e dizer que se abstém de uma vida sexual ativa. Ou seja, sem as devidas informações que são garantidas pela educação sexual, estes indivíduos estão sujeitos a contrair diversas infecções, incluindo o HIV.
De acordo com a Unesco, apenas 34% dos adolescentes e jovens adultos no mundo demonstram saber de fato como acontece a transmissão do HIV e como prevenir-se. Este cenário leva a uma sobrecarga da Medicina, pois significa que, caso um dia contraiam o vírus, eles também não farão testes para diagnóstico e, assim, muitos poderão desenvolver a Aids.
Em um estudo publicado pela American Journal of Public Health, os adolescentes que utilizaram camisinha desde a sua primeira relação sexual obtiveram melhores resultados em vários índices de saúde sexual do que aqueles que não tinham este costume. Os participantes da pesquisa foram acompanhados durante sete anos e, após este período, os cientistas puderam fazer mais descobertas relevantes.
Por exemplo, os jovens que iniciaram suas vidas sexuais com segurança tinham 30% mais chance de também terem usado preservativos em suas experiências mais recentes. Além disso, havia metade das chances de eles já terem contraído clamídia ou gonorreia em comparação com o outro grupo.
Sabe como estes resultados podem ser multiplicados? Por meio da educação sexual. Um dos objetivos primordiais desta disciplina é exatamente ensinar sobre saúde, bem-estar e o perigo das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), para que os estudantes possam tomar decisões mais acertadas ao explorar sua sexualidade. Afinal, sem informação suficiente, é possível que muitos tenham comportamentos que assumem falsamente serem seguros.
Promove autoconhecimento e independência
Educação sexual não é “ensinar a fazer sexo”. Na verdade, esta é uma disciplina profunda sobre tudo que está envolvido na prática sexual que, em primeira instância, contém o autoconhecimento corporal a ser promovido por meio do ensino de anatomia, puberdade e desenvolvimento humano.
Levantamentos da Unesco mostraram que dois em cada três pré-adolescentes não compreendem o que está acontecendo com seus corpos quando têm sua menarca. Falar sobre a primeira menstruação, como funciona o ciclo menstrual e o que isso implica biológica e socialmente é de suma importância para que meninas cisgêneros, meninos trans e crianças não-bináries tenham uma vida saudável e independente.
Outro aspecto do autoconhecimento que também é abordado nas aulas refere-se à esfera emocional, pois a vida sexual pode envolver tanto o lado físico quanto o psíquico. Relacionamentos românticos e familiares, habilidades de comunicação e de negociação fazem parte de um bom programa de educação sexual. Assim como sociologia, cultura e estudos de mídia, que fomentam questionamentos sobre opressão sexual, liberdade reprodutiva e as representações sociais ao longo da História.
Nós já falamos sobre abuso, mas vamos retomar brevemente este assunto, pois ainda não é senso comum em nossa sociedade que a violência sexual também pode acontecer entre parceiros. Logo, faz parte da educação sexual tanto trabalhar conceitualmente e com exemplos o que é um relacionamento saudável quanto auxiliar na construção de uma autoimagem positiva.
Já imaginou os ganhos em saúde mental para jovens com distúrbios alimentares e deficiências físicas? Estudos mostram que todo este trabalho de debater sobre sexualidade contribui para que crianças e adolescentes tornem-se adultos empáticos e cuidadosos.
Por fim, tudo isso contribui com a Medicina no longo prazo em duas frentes: formando médicos mais humanizados desde a infância e pacientes mais direcionados a métodos preventivos para manter a saúde em dia.
Promove inclusão social
Por falar em formação humanizada com investimentos em educação sexual, os futuros médicos também estarão mais preparados para atender à comunidade LGBTQIAP+. Afinal, não é possível falar sobre corpo, saúde e experiências interpessoais sem incluir as particularidades de todos os estudantes presentes em sala.
Identidade de gênero e orientação sexual são dois importantes tópicos desta disciplina, a começar pelo ensino de que tais termos significam coisas completamente diferentes. Enquanto o primeiro refere-se à forma como a pessoa se reconhece, podendo ser homem, mulher, outras identidades ou nenhuma; o segundo trata da presença ou da ausência de atração e/ou desejo afetivo, e/ou sexual por parcerias de um ou mais gêneros ou independentemente deles.
Por que isso é importante? Porque os métodos de prevenção das ISTs a serem ensinados variam de acordo com os tipos de corpos existentes e das práticas sexuais também. Por exemplo, uma jovem heterosexual e cisgênero pode manter relações com um jovem transexual, e isso significa que sugerir o uso de uma camisinha peniana não é a orientação da qual ela precisa para se proteger.
Além disso, a orientação por não ser sexualmente ativo também faz parte deste espectro e é denominada assexualidade. Vale ressaltar que ser assexual não é uma escolha e que o nome correto para a opção voluntária é celibato. Nós precisaríamos de um artigo exclusivo para abordar todas as nuances desta forma de ser e de existir no mundo, portanto, nos limitaremos às mais relevantes para a Medicina.
Uma delas é o fato de que a falta de atração sexual não se traduz também na ausência de interesse afetivo. Ou seja, pessoas assexuais podem se apaixonar, construir relacionamentos românticos e ter vontade de engravidar, apesar de não gostarem de fazer sexo. Outra é a possibilidade de que essas pessoas sintam prazer em se masturbar, sendo este um assunto que é devidamente abordado pela educação sexual.
Neste ponto, a contribuição da disciplina junto à Medicina para a saúde mental é ainda maior, pois esses estudantes sofrem diariamente com a LGBTfobia, muitas vezes dentro de casa. Oferecer um ambiente em que eles sintam-se seguros e bem com quem são exerce um impacto positivo na redução dos índices de suicídio, que são mais altos entre pessoas queer.
Em suma, a sociedade como um todo se torna mais inclusiva, uma vez que o padrão heterocisnormativo começa a ser desconstruído pela base. Isto é, pelos indivíduos que serão os líderes da próxima geração. O que permite aos jovens pertencentes à comunidade LGBTQIAP+ terem mais liberdade para viver suas sexualidades com segurança.
O papel do Pediatra na educação sexual
Para quem quer se especializar em pediatria após a graduação, não deve ter sido nada fácil ler sobre o quanto as crianças e os adolescentes brasileiros estão expostos a perigos devido à falta de um programa de educação sexual nacional no país. Mas bora focar no que estará ao seu alcance para melhorar esta realidade no futuro?
No exercício de sua profissão, pediatras podem cumprir o papel de incentivar os pais durante as consultas a falarem sobre sexualidade com seus filhos, citando todos os riscos que nós apresentamos até aqui. Assim como, de também fazer perguntas adequadas diretamente a seus pacientes quando perceberem sinais de que eles estejam sofrendo abusos em casa.
Além disso, independentemente da postura dos responsáveis, será sua obrigação discutir sobre métodos contraceptivos e de prevenção à ISTs quando seu paciente entrar na puberdade. Isso porque o seu compromisso primeiro é com a saúde e, educando-o, você também estará protegendo os possíveis parceiros com quem ele mantiver relações sexuais.
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