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Religião e saúde: como ser um médico que respeita as diferenças

Neste artigo, vamos lhe propor uma reflexão sobre intolerância religiosa. A depender da sua resposta, o mais indicado é ler o que escrevemos até o fim!

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Na primeira temporada de Sob Pressão, série médica brasileira premiada internacionalmente, há um caso peculiar envolvendo a fé. A produção tem várias cenas de intolerância religiosa sendo praticada pelo protagonista, o médico Evandro.

Nunca assistiu? Então, continue sua leitura recheada de spoilers.

O episódio traz o caso de um jovem que sofreu um acidente de trânsito, foi atendido em um hospital do Sistema Único de Saúde (SUS), mas acabou sofrendo morte cerebral. Apesar de tornar a situação ainda mais triste, a pouca idade do garoto tinha um lado positivo: seus outros órgãos estavam saudáveis e, portanto, poderiam ser transplantados.

Esta possibilidade anima a equipe médica, pela ideia de que algo bom nasceria daquela tragédia. Mas, quando a mãe do jovem finalmente aparece, ela impede que os aparelhos sejam desligados, porque acredita que o Deus no qual crê vai intervir em benefício de seu filho.

É nesse momento que os atos intolerantes de Evandro irrompem contra a mulher. Ele a desrespeita verbalmente, demonstrando todo seu preconceito, ao ser incapaz de admitir que, por mais que não partilhasse de suas convicções, ela tinha pleno direito de sua decisão.

Por fim, a situação é resolvida quando outra personagem, a médica Carolina, encontra na carteira do paciente um cartão do SUS, que informa a sua posição como doador de órgãos. Diante disso, a mãe não tem outra escolha a não ser acatar a vontade do filho, o que é de fato previsto pela legislação brasileira na vida real.

Agora, pare um momento e reflita. Será que eu sentiria a mesma raiva em uma situação como essa e agiria de modo intolerante também? Se você titubeou um pouco entre o sim e o não, está na hora de aprender como ser um médico que respeita as diferenças.

O que é intolerância religiosa?

Ser intolerante contra a crença alheia é descriminar de forma explícita ou não alguém por conta da crença que a pessoa professa. Na pior das instâncias, o preconceito se apresenta por meio de violências físicas ou psicológicas, caracterizadas pelas ofensas verbais ou pela humilhação manipuladora, por exemplo.

No entanto, o simples ato de pensar que um indivíduo é pior ou melhor do que você devido à sua fé configura intolerância religiosa. Isso porque a discriminação é sobre o caráter de quem discrimina e não sobre o sofrimento de quem é o alvo.

Como país laico, o Brasil respeita o que diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos, estabelecida pela Organização Mundial das Nações Unidas (ONU). E isso não é de hoje.

A Constituição Federal, promulgada em 1988, prevê em seu 5º artigo a garantia da igualdade religiosa e a laicidade do Estado brasileiro. Além disso, desde 1997, praticar, induzir ou incitar crimes motivados por descriminação contra a religião de alguém é considerado crime, com pena de três anos de reclusão e multa.

Em entrevista para um estudo realizado em Salvador, líderes religiosos relataram que já ocorreu de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Agentes de Endemias se recusarem a adentrar os terreiros a fim de realizar seus trabalhos. Situações como essa ferem diretamente o que a Atenção Primária à Saúde se propõe a ser.

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Como ser um médico que respeita a diversidade religiosa

Atenha-se ao consentimento esclarecido

Consentimento esclarecido é o termo utilizado para a decisão de concordar com o tratamento médico sugerido após a devida explicação de todas as consequências positivas ou negativas envolvidas, prevendo que nada pode ser ocultado do paciente para que ele seja realmente capaz de, como leigo, consentir ou não.

Um médico tolerante dará todas as informações com o mesmo peso, sem buscar induzir o paciente à escolha que deseja. Assim, respeita a liberdade da pessoa que, em pleno domínio de suas faculdades mentais, pode optar por seguir suas crenças e valores religiosos a despeito de como isso afetará a sua saúde em curto, médio ou longo prazo.

Respeite o Código de Ética Médica

Um dos pilares da bioética é o princípio denominado Autonomia do Paciente. Segundo este conceito, as pessoas têm o poder de tomar as decisões relacionadas ao seu tratamento, o que depende, claro, que o item anterior seja cumprido à risca.

Não há nenhum adendo que limite este poder, do tipo “a menos que a escolha do paciente esteja desvinculada do que define a ciência”. Por exemplo, a recusa de um indivíduo em receber uma transfusão sanguínea que salvará a sua vida não está aberta a julgamentos.

Lançar mão do princípio da beneficência para ir contra a vontade do paciente tampouco é razoável. Pelo menos dois estudiosos, Sprung e Eidelman, já escreveram sobre isso, afirmando que “a beneficência requer que o médico faça o que beneficiará o seu paciente, de acordo com a visão do paciente e não com a visão do médico”.

Busque conhecer as principais religiões dos brasileiros

O Brasil é um país muito grande e diverso e isso transparece também na quantidade de religiões praticadas por aqui. Nesse sentido, seria demais exigir que qualquer médico compreendesse todas as nuances de cada uma delas.

Porém, procurar conhecer os ensinamentos que implicam diretamente em questões de saúde é, sim, algo bem tangível e aconselhado que se faça. Com a facilidade de pesquisa pelo Google, em poucas horas é possível encontrar respostas capazes de evitar muitos mal entendidos.

Em 2020, o Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) se colocou à disposição para responder dúvidas quanto ao atendimento específico a adeptos das religiões de matriz africana. Com certeza, outras entidades já tomaram iniciativas parecidas on-line ou produziram conteúdos a respeito.

Amplie seus horizontes: Como o racismo estrutural dificulta o acesso à saúde no Brasil

Desenvolva sua empatia

Não, empatia não é um dom inato com o qual algumas pessoas foram agraciadas ao nascer. Empatia é uma habilidade, que pode ser desenvolvida, com exercícios práticos e de reflexão, ou entorpecida, por causa de eventos traumáticos, por exemplo.  

Em poucas palavras, ser empático é ser capaz de se colocar no lugar do outro, para assim conseguir vislumbrar minimamente como ele se sente. Perceba que não falamos que é “sentir o que o outro sente”, pois isso não é possível. Na verdade, a empatia se traduz nessa busca por compreender, por respeitar e por tratar as pessoas como elas desejam e não como você acredita ser o ideal.

Como médico, caso opte por uma das várias especialidades, cujas rotinas necessariamente demandam contato direto com os pacientes em estado consciente, você vai precisar muito dessa soft skill. Um profissional bom para ajudá-lo nesse exercício é o psicólogo.

Trabalhe o desapego

É um traço egocêntrico acreditar que é a pessoa mais indicada a determinar o que é melhor para alguém que não você mesmo. A Medicina moderna já absorveu muito bem o conceito de que ter qualidade de vida é mais importante do que sobreviver por mais tempo.

A partir desta perspectiva, busque fazer o seu melhor e trabalhe o desapego no que tange ao resultado das suas ações. Como médico, você orientou o paciente quanto às suas questões de saúde, explicou os prós e contras das opções disponíveis e deu a sua opinião profissional?

Então, mesmo que ele tome uma decisão diferente da que acredita ser a mais acertada, você precisa estar em paz, pois dentro do que cabia a você fazer como agente de saúde, você o fez.  

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